“Próximo Oriente”: a música como porto de partida

Em Próximo Oriente, programa que realizo para a Rádio Macau, a música é o porto de partida de viagens pelos sons e pelas fantasias de um Oriente inventado e reinventado, expedições por paisagens sonoras, testemunhos e devaneios, ideias feitas e desfeitas, retratos à distância, fragmentos de intimidade e aproximações ao eterno mistério do “Outro”.

“Próximo Oriente” vai em busca das traduções sonoras dos imaginários que associamos às terras distantes e extremamente orientais: o desconhecido, a aventura, a espiritualidade, o misticismo, a serenidade, a sensualidade, a natureza pura.

No “Próximo Oriente” somos estrangeiros, corpos estranhos. Parte-se sempre de um determinado ponto de vista. 

Para mim, o Oriente começa a estender-se a partir do norte de África e das antigas fronteiras, na Europa, dos impérios Austro-Húngaro e Otomano.


A diferentes áreas geográficas correspondem diferentes ambientes, diferentes instrumentos, sonoridades, timbres. Procura-se a reprodução de uma polifonia real e imaginária.

“Próximo Oriente” é um portal para paisagens sonoras fabricadas num mundo autêntico.

Aquilo a que chamamos Oriente, como se fosse uma entidade única, designa, na verdade, a região mais diversa do mundo. E é fascinante como um simples tom ou um breve acorde nos remetem para esse vasto universo, minúsculas chaves abrindo um infinito Cosmos.

Na cultura popular, o Oriente é invariavelmente apresentado como uma ficção – alimentada desde há muito –, sempre descrito com as mesmas palavras, expressões, os mesmos lugares comuns. A Índia espiritual, o Médio Oriente dos desertos abertos e do Islão fechado, o Sudeste Asiático das densas selvas, das cidades caóticas e praias de areia branca e água transparente, a China das multidões, a meio caminho entre o tradicional e o moderno, das montanhas entre brumas. O Japão conservador e tecnológico, empresarial e zen.

Todos estes imaginários estão representados na cultura popular ocidental, incluindo a música.

E são também muitos - e antigos -, os exemplos de tradições musicais nascidas a Oriente que entraram no léxico musical do Ocidente (e vice-versa).

Na geografia, subsistem ainda fronteiras de outros tempos e histórias, mas que sentido fazem esses limites numa era digital de transgressão, contaminações e influências?

Os imaginários mais explorados em “Próximo Oriente” têm origem no Japão, onde existe, talvez, a síntese mais perfeita daquilo que o músico e compositor norte-americano Jon Hassell chamou “fourth world music”: “a unified primitive/futuristic sound combining features of world ethnic styles with advanced electronic techniques".

Vem à mente a música pioneira do colectivo Geinoh Yamashirogumi ou Midori Takada, mas também os norte-americanos Visible Cloaks, repositórios vivos de uma herança que interpretam com grande fidelidade e imaginação.


Na década de 1980, o Japão vivia um “milagre económico” e a música foi reflectindo essa realidade, com a introdução de novos modelos consumistas. Uma verdadeira banda-sonora da gigante “asset bubble”. Clubes nocturnos, centros comerciais, roupa de “designers”, viagens, “lifestyle”, espiritualidade “new age”, arquitectura minimalista, museus de arte contemporânea, cidades futuristas, consciência ecológica. Para tudo isto foi criada música específica. 

As fontes sonoras de “Próximo Oriente” concentram-se no final da década de 1970 até ao princípio da década de 1990, mas ainda hoje novos artistas continuam a beber nesses tempos passados, e outros ainda mais recuados.


A “exotica” dos anos 1950 e 1960, por exemplo, com o seu misticismo de luar na praia, ilhas paradisíacas desertas, selvas estereofónicas, paganismo de cocktail na mão, palmeiras “kitsch” e marimbas suaves como a brisa e o mar.




Associada à música surge sempre a ideia de viagem: a deslocação física, a expedição, um itinerário, mas também uma jornada interior, uma andança espiritual, de olhos fechados.

Escreve Chateubriand em “Viagem à Itália”: “Cada homem traz consigo um mundo constituído por tudo o que viu e amou e no qual penetra a todo o instante ao mesmo tempo que percorre e parece habitar um mundo estranho”.

No “Próximo Oriente” rondamos a descoberta, a exploração, o desconhecido. Tudo isto num tempo de distâncias tornadas quase impossíveis, facilmente anuláveis com um simples gesto, um clique. O tempo do turismo total, como chamou António Guerreiro, em que 
o exotismo se tornou um produto exportável e transmissível. Já não é preciso sair, quanto mais aventurarmo-nos. Tudo se tornou estático, imóvel, como os monumentos. Já não há distinção entre viajantes e autóctones. Somos todos visitantes na aldeia global.

No “Próximo Oriente” privilegia-se o tempo de quando o mundo continha mistérios, se negociavam objectos e sonhos exóticos e utopias, quando as distâncias demoravam a percorrer, como se recorda no cintilante livro "Bússula", de Mathias Énard. 

No Próximo Oriente, procuramos regressar ao tempo em que a Rádio dava a conhecer o mundo através da sua forma mais íntima, o som.

E debatemo-nos com o eterno dilema de Claude Lévi-Strauss:

“Quando é que a Índia devia ter sido vista? No final das contas sou prisioneiro de uma alternativa: ora viajante antigo, confrontado com um espectáculo prodigioso ao qual tudo ou quase tudo passaria despercebido; ora viajante moderno, correndo atrás dos vestígios de uma realidade desaparecida. Dentro de algumas centenas de anos, outro viajante, tão desesperado quanto eu, neste mesmo lugar, chorará o desaparecimento daquilo que eu teria podido ver e que não apreendi.”

No “Próximo Oriente”, estamos sempre entre dois mundos: “Entre o lugar abandonado e a terra tumultuosa à chegada”, como escreve Michel Onfray em “Teoria da Viagem”.

Entre dois mundos e entre dois tempos.

Ainda Onfray: “Viajar pressupõe não tanto um espírito missionário e limitado, mas uma vontade etnológica, cosmopolita, descentrada e aberta. O turista compara, o viajante separa. O primeiro fica à porta de uma civilização, o segundo esforça-se por entrar num mundo desconhecido”.

Contudo: “O mundo resiste às tentativas de ser traduzido em palavras”.

E à música?

Hugo Pinto, Macau
Janeiro de 2019





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